Escrita(s) insubmissa(s) da(s) história(s): travessias epistêmicas a partir das narrativas de mulheres às margens.
Insubmissive writing of history(s): epistemic crossings from the narratives of women on the margins
Escritura insumisiva de la(s) historia(s): cruces epistémicos de las narrativas de las mujeres en los márgenes
Flávia Pereira Machado
Resumo
As insurgências das/dos sujeitas/os às margens provocam movimentos contínuos e não lineares de questionamentos da matriz ocidental, branca, cisheteropatriarcal, eurocentrada, o que evidencia a necessidade da incorporação de epistemes, saberes, fazeres e conhecimentos até então denegados pela ciência moderna e pela produção acadêmica hegemônica nas universidades. Tais movimentos têm gerado um “transbordamento” acadêmico e político em direção a uma nova percepção da condição criativa que impulsiona os entrecruzamentos entre esses diversos campos do saber e das experiências marginalizadas. Em vista dessa implosão dos cânones, a proposta do presente artigo incide em uma reflexão sobre os deslocamentos teóricos, epistemológicos e metodológicos na escrita da história, a partir da pesquisa com mulheres sem terra em Goiás. Proponho, dessa maneira, realizar uma breve incursão na matriz histórica hegemônica no sentido de identificar algumas das iniciativas de incorporação dos e das sujeitos e sujeitas às margens, especificamente evidenciando a passagem de uma história das mulheres e das relações de gênero para uma perspectiva feminista, decolonial e interseccional. Ainda nesse ensejo, busco evidenciar como as intersecções de raça, classe, gênero, geração, desterramento, entre outros marcadores, que atravessam os corpos dessas mulheres às margens, provocam leituras e escritas insubmissas mediante esse cânone historiográfico e a produção acadêmico/científica ainda pautada na racionalidade ocidental.
Palavras-chave
Abstract
The insurgencies of the subjects on the margins provoke continuous and non-linear movements of questioning the Western, white, cisheteropatriarchal, Eurocentric matrix, which highlights the need to incorporate epistemes, knowledges, doings and knowledge hitherto denied by modern science and hegemonic academic production in universities. Such movements have generated an academic and political "overflow" towards a new perception of the creative condition that drives the intersections between these diverse fields of knowledge and marginalized experiences. In view of this implosion of the canons, the purpose of this article is to reflect on the theoretical, epistemological and methodological dislocations in the writing of history, based on research with landless women in Goiás. I propose, in this way, to make a brief incursion into the hegemonic historical matrix in order to identify some of the initiatives to incorporate the subjects and subjects on the margins, specifically highlighting the transition from a history of women and gender relations to a feminist, decolonial and intersectional perspective. Also in this context, I seek to highlight how the intersections of race, class, gender, generation, dispossession, among other markers, which cross through the bodies of these women on the margins, provoke readings and unsubmissive writings through this historiographical canon and the academic/scientific production still based on Western rationality.
Keywords
Resumen
Las insurgencias de los sujetos en los márgenes provocan movimientos continuos y no lineales de cuestionamiento de la matriz occidental, blanca, cisheteropatriarcal y eurocéntrica, lo que pone de manifiesto la necesidad de incorporar epistemes, saberes, haceres y conocimientos hasta ahora negados por la ciencia moderna y la producción académica hegemónica en las universidades. Estos movimientos han generado un "desbordamiento" académico y político hacia una nueva percepción de la condición creativa que impulsa las intersecciones entre estos diversos campos del conocimiento y las experiencias marginadas. Ante esta implosión de los cánones, el propósito de este artículo es reflexionar sobre las dislocaciones teóricas, epistemológicas y metodológicas en la escritura de la historia, a partir de una investigación con mujeres sin tierra en Goiás. Propongo, de este modo, hacer una breve incursión en la matriz histórica hegemónica para identificar algunas de las iniciativas de incorporación de los sujetos y las sujetas en los márgenes, destacando específicamente el paso de una historia de las mujeres y las relaciones de género a una perspectiva feminista, decolonial e interseccional. También en este contexto, busco resaltar cómo las intersecciones de raza, clase, género, generación, desposesión, entre otros marcadores, que atraviesan los cuerpos de estas mujeres en los márgenes, provocan lecturas y escrituras insumisas a través de este canon historiográfico y de la producción académica/científica aún basada en la racionalidad occidental.
Palabras clave
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Submetido em:
31/08/2021
Aceito em:
25/09/2021
Publicado em:
15/12/2021